sábado, 18 de julho de 2020

DEBAIXO DE SETE CHAVES


Meus amigos? Acho que nunca senti tanto a falta deles.

Eu queria que o Rodrigo me chamasse de novo pra jogar basquete lá no Biacica. “Agora toda sexta eu vou treinar, quem sabe até vou ser profissional um dia”, ele me disse, cheio de determinação, debaixo da fervura do meio-dia, enquanto nós tocávamos a bola com outros dois meninos que a gente nem conhecia. O chão da quadra ardia, à beira do asfalto, do outro lado da grade. Eu sempre levava o Rodrigo a sério, porque ele tinha o ar de quem era o menino mais vivido do nosso bando. Rodrigo era grandão, muito bom com esportes. Eu nunca fui bom atleta, mas agora eu bem que queria estar jogando com ele na quadra, com o sol quente acima da gente.

Dudu era vaidoso. Na escola sempre andava bem vestido, e toda vez que o via, estava com uma pretendente diferente. Era um ótimo jogador de futebol. Lembro da noite que nossa turma tinha saído pra jogar uma pelada. Um frio danado, eu suando gelado debaixo da pesada blusa, tentando não errar nenhum passe. Mas não importava. Chutei a bola. Ela foi bem, bem longe. “Relaxa que todo mundo aqui é ruim”, ele disse, enquanto sorria pra minha tentativa que falhou. 

Os meninos zoavam Valdinho, e ele zoava de volta, à sua maneira. Sempre estava trocando uma ideia com a gente. Falava por horas sobre músicas. Cheio das piadas. Valdinho era tão ruim quanto eu nos esportes, e também no dominó, que nós quatro jogávamos fervorosamente. “Não fecha minha ponta, meu”, brigava o Rodrigo. A gente gostava da bagunça, de gritar “bati” e de fazer barulho com as peças. E a professora, lançando seu olhar de reprovação, ameaçando recolher o jogo, e a gente se forçando a agarrar as canetas e copiar a lição.

Seja debaixo daquela quadra, seja jogando sobre uma mesa toda rabiscada e arranhada, quase rachando as peças ao meio, nós quatro não nos desgrudávamos. Era pura energia. E eu já falei, “a gente vai se ver depois disso”. Não custava nada estar na companhia dos meus comparsas. Mas hoje custa muito. E só agora que eu me dou conta do quanto tudo era tão precioso.

A verdade é que eu venho ensaiando, há dias, um sábado com direito a dominó e futebol, comprando pirulito em qualquer boteco no caminho, correndo dos cachorros, rindo que nem um bando de loucos, entrando em qualquer rua e “vendo onde vai dar”, fazendo embaixadinha com a bola no meio da avenida: “olha o carro vindo”. A gente não tava nem aí. Eu faço esses planos desejando que a gente se esbarre e que um de nós esteja com uma bola, ou uma sacolinha cheia de peças de dominó, ou o que for.

Eu queria ser honesto, pelo menos agora, com o uso da palavra. Se eu falasse sobre qualquer outra coisa, não teria graça: eu sinto falta é dos meus parceiros. É a nossa bagunça que faz falta nesses dias em que o portão de casa virou uma fronteira. As ruas, campos minados. Lá fora, outra nação, um território estrangeiro. A cada dia uma terra mais estranha da que eu conhecia.

Milton Nascimento já cantava:
"Amigo é coisa pra se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração"

Eles não estão tão distantes, não mesmo, mas parece que nós nunca estivemos tão longe uns dos outros. Longe demais, às vezes. Que as palavras amenizem a distância. Essa crônica é para eles.

Maio de 2020

Foto do autor, setembro de 2019.

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